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Poesia e Reflexão
28 de julho de 2016

O Deus Dourado dos Urubus

admin conto, urubu Comments are off

Por: Isabel Fomm Vasconcellos*

Zercs, o urubu, tinha uma vocação solitária. O urubu, já se sabe, não é mesmo de andar em bando. Está certo que, quando tem uma carniça dando sopa por perto, aparecem muitos deles e, por isso, o leigo desavisado pode pensar que eles são um bando. Mas não são. O que os une, naquele momento é só naquele, é simplesmente a fome.

Mas Zercs era ainda mais solitário. Quando estava lá pelas bandas da Avenida Paulista (Ah, pensou que não tinha urubu na Paulista? Enganou-se), o que acontecia de julho a dezembro, tinha seu canto predileto. Postava-se ao lado das antenas de TV que existiam na cobertura de um condomínio e ficava lá, se exibindo, mostrando a envergadura de suas longas asas, essas coisas.
Por isso foi que notou quando o Thiago – aquele homem negro como ele próprio (na cor, porque Zercs sabia que não podia chama-lo assim nesses tempos politicamente corretos, tinha que ser “afrodescendente”) se dirigia lentamente à beira da lage de cobertura do prédio, bem próximo de onde ele, Zercs, estava.

Tinha sido a mãe de Zercs quem contara a ele que Thiago, o negro, lavava a janelas dos prédios desde que estes tinham sido inaugurados, em 1959. Desde aquele tempo longínquo, Thiago era conhecido por driblar todos os procedimentos de segurança e, frequentemente, era visto a dançar pelos parapeitos das enormes janelas, do lado de fora, sem nenhuma proteção. Isso, aliás, quase lhe custara, em inúmeras ocasiões, o emprego. Mas fato é que todos os síndicos e zeladores que passaram, nas últimas quatro décadas, pelo condomínio, mantinham uma secreta afeição pelo Thiago, além de saber que ele era uma espécie de “alma” do prédio. Por isso, acreditavam que não poderiam dispensar um homem daqueles só porque, vira e mexe, ele se punha a lavar as janelas sem nenhuma proteção.

De fato, Thiago era amado por todos os habitantes daquele prédio.

No tempo dos velhos elevadores com cabines de madeira, que viviam quebrando, era comum ouvir-se uma voz ecoar pelo condomínio, às vezes divertida, às vezes assustada, mas sempre aos berros: — Thiaaaagooo, vem me tirar daqui! – Era alguém preso nos elevadores. Se alguma coisa ia mal num apartamento, a quem chamavam? Thiago. Para consertar o cano de gás. A mangueira da máquina de lavar. Todos, mas todos os moradores mesmo, conheciam e se valiam daquele homem simpático para quebrar qualquer galho doméstico e, claro, para lavar as janelas. Por isso, Thiago era amado. E já tomara café em todas as xícaras do condomínio. Isso sem contar a sua popularidade com as empregadas domésticas, naquele tempo em que quase todas as donas de casa tinham empregadas residentes e em regime de semiescravidão. Era o Thiago quem as ouvia e consolava quando as pobres moças estavam tristes. Era ele quem as levava, aos sábados, para comer feijoada num boteco ali na esquina da Rua Joaquim Eugênio de Lima.
Quem contara tudo isso à mãe de Zercs, fora a avó dele. E quem contara a avó, fora a bisavó. Portanto, para Zercs, cuja expectativa de vida, como a de todos os urubus, raramente ultrapassava 10 anos, Thiago era um ser mitológico, um humano, negro como os urubus, que vivia nas alturas por gerações e gerações.

Assim, ao vê-lo aproximar-se, chegando tão perto, tão perto mesmo, Zercs tremeu de emoção. Debaixo daquela chuva, que ele aproveitava para lavar as longas asas, não podia distinguir as lágrimas que corriam pelo rosto de seu deus, Thiago. Mas, com sua sensibilidade de urubu, logo percebeu que a alma de Thiago, naquela manhã chuvosa que inaugurava o inverno, estava tão negra quanto a pele, humana, dele e tão negra quanto suas próprias asas…, mas como? O que teria acontecido? Todos sabiam – humanos, urubus, azaleias, rosas, Isis azuis, bem-te-vis de peito amarelo, lagartixas, borboletas e , enfim, todos os seres vivos que ali estavam – que a coisa mais marcante em Thiago era seu eterno sorriso, sua alegria, sua gargalhada fácil, tudo isso fruto de sua generosidade…

Porque era íntimo dos altos picos, porque era negro e não temia a chuva, porque era alegre e risonho como os urubus, Zercs sabia que Thiago era o deus dos Coragyps atratus, ou seja, da sua própria espécie.
Foi então que, de súbito, Thiago despencou. Saltou da cobertura do prédio, assustando Zercs que mal teve tempo de pensar que ele, Thiago, afinal, tinha tudo dos Coragyps, menos as asas.
Logo aconteceu uma enorme movimentação no pátio do prédio, junto ao canteiro de Isis azuis onde o corpo de Thiago aterrissara e Zercs viu que a alma dourada daquele corpo negro, agora sem vida, subia aos céus, num voo inigualável.
‘Lá se vai o meu Deus” – pensou o nosso herói urubu – “de volta pra casa.”
E assim pensando, alçou voo ele próprio, sem se dar conta que, lá embaixo, os humanos se debatiam no incrível mistério de descobrir porque um homem que parecia tão feliz decidira acabar com a própria vida.

*Isabel Fomm de Vasconcellos é escritora e jornalista com especialização em saúde.
[email protected]

foto: Isabel Fomm Vasconcellos

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Flavia Hesse é inspiradora digital, terapeuta floral, publisher e advogada

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