Por: Isabel Fomm Vasconcellos*
De todas as aventuras que já havia vivido nas suas quase quatro décadas de vida, nenhuma lhe parecera tão inverossímil quanto o que estava acontecendo agora. Estaria sonhando? Ou seria vítima de um engodo bem produzido? Mas o fato é que estava indiscutivelmente sozinha quando o elevador parou entre dois andares do enorme edifício daquela que era uma das maiores indústrias farmacêuticas do país.
Ela não era muito chegada a ataques de pânico e, quando o elevador estancou de um tranco, ela imaginou que o pequeno incidente logo estaria superado pela eficiência do pessoal da manutenção. Está certo que o expediente já acabara há umas duas horas. Mesmo porque, se assim não fosse, ela jamais estaria sozinha num elevador. Pegou o fone do intercomunicador para avisar na portaria que estava presa ali. Não funcionava. Apertou o botão de alarme. Nada. Ué, que estranho. Aquela pequena sucessão de falhas decidamente não combinava com a eficiência da empresa.
Aliás, uma das coisas mais acertadas que ela fizera em sua vida profissional fora aceitar transferir-se da companhia multinacional, onde trabalhava antes, para cá. Todo mundo, na época em que ela aceitou este cargo, achava que era uma temeridade trocar a segurança de dez anos de trabalho, com todos os benefícios oferecidos por uma empresa internacional, por uma aventura num laboratório brasileiro. E não adiantava ela argumentar que estava indo para uma indústria sólida, com mais de sete décadas de atuação no mercado…
– Mas você estava certa, não é, Maria do Carmo?
Ela se voltou assustada. Se estava só e presa no elevador, quem falava com ela, como se o eco dos seus pensamentos? Virou-se e deu com aquela figura, um cavalheiro, vestido como no começo do século passado, muito elegante e empertigado.
– Quem é você? Como veio parar aqui?
– Josias Melo de Almeida, ao seu dispor. – Respondeu ele, curvando o corpo numa mesura e estendendo-lhe a mão.
Automaticamente, respondeu ao gesto, mas sua mão resvalou no vazio.
Ele riu:
– Desculpe-me. Sempre me esqueço que, na minha condição, o contato físico é impossível.
– Olhe, eu não acredito em fantasmas. Muito menos no fantasma do fundador da indústria onde trabalho. Isso deve ser, no mínimo, alguma brincadeira do pessoal aqui da casa, para me gozar por causa da promoção…
– Em parte, você está certa. Eu estou aqui e parei o tempo justamente para lhe falar da sua promoção…
– Parou o tempo?
– Sim. Você teve a impressão que foi o elevador que parou. Mas, de fato, eu parei o tempo, estamos congelados no tempo, por isso você não conseguiu falar com ninguém pelo comunicador. Quando voltar ao normal, o elevador seguirá seu trajeto, porque não houve parada alguma. O tempo é que está parado.
– Poxa… – tentou rir ela – devo ser importante, para você parar o tempo apenas para falar comigo…
– Pois é. Você ainda é apenas a supervisora dos representantes, mas a minha empresa lhe reserva um futuro brilhante. Aliás, eu jamais poderia imaginar, quando fundei este laboratório que, um dia, 80 anos depois, ele seria presidido por uma mulher.
– Ah, isso é alguma brincadeira, sem dúvida. Você deve ser um tipo de projeção holográfica. Aposto que isso é coisa do…
– Não – interrompeu ele, com uma expressão tão séria no rosto que Maria do Carmo começou mesmo a acreditar que estava, afinal, diante do fundador da Avel Farmacêutica.
Josias Melo de Almeida começara sua vida como caixeiro viajante, no comecinho do século XX. Andava pelo interior do estado de São Paulo vendendo, de porta em porta, elixires e xaropes. Mas tinha a alma de alquimista e começou a estudar a química dos medicamentos. Já tinha mais de 30 anos quando conseguiu estudar formalmente e se tornar biomédico e farmacêutico. Fascinado pela flora brasileira, particularmente a amazônica (que, na época, nem sonhava estar na moda…), começou a pesquisar a possibilidade dos medicamentos fitoterápicos. Fundou a Avel, mas só teve sucesso mesmo quando começou a produzir medicamentos similares aqueles que já tinham sua patente liberada. Associou-se a laboratórios internacionais, foi criando sua linha de produtos e, quando morreu, em 1968, já era o proprietário da maior farmacêutica brasileira. Vinte anos depois de sua morte, a Avel tornou-se uma empresa de capital aberto e, nestes últimos vinte anos, crescera ainda mais.
Maria do Carmo, que começara sua carreira quinze anos atrás como propagandista de um pequeno laboratório nacional, acreditara que o auge de sua vida profissional estaria na companhia internacional para onde conseguira ir depois de uma longa batalha. Mas, ao se transferir para a Avel, no cargo de supervisora, se encantara ao perceber que aquela empresa brasileira atuava nos moldes da mais exigente multinacional. Estava feliz e jamais passara pela sua cabeça a ideia de pleitear a presidência…. Agora lá estava aquele inacreditável fantasma de Josias a dizer que ela…
– Sabe, Maria do Carmo – disse ele, interrompendo-lhe os pensamentos. – Existe um poema do propagandista farmacêutico. O autor é desconhecido. Mas o poema fala sobre o representante chegando em casa, depois de sua jornada de trabalho, e sendo recebido pela esposa dedicada…. Foi escrito, evidentemente, antes das mulheres conquistarem posições no mundo produtivo. Quando eu morri, elas já estavam entrando, mas ainda timidamente, nas empresas. E minha alma muito se surpreendeu com a ascensão profissional do chamado segundo sexo. Minha alma acompanhou sua carreira. Vi a sua luta, vi quantas noites você passou em claro, estudando a “literatura” dos produtos que deveria divulgar. Vi as suas mãos se ensoparem, transpirando, quando você teve que enfrentar seus primeiros médicos estrelas, alguns dos super professores, considerados como deuses. Vi a sua angústia, quando seus dois filhos eram ainda bebês, e você precisava viajar… Vi a sua garra, a sua determinação, a sua vontade de vencer… E escolhi você.
– Me escolheu?
– Sim. Você é o homem, digo, a mulher certa para comandar a empresa que construí. E vim aqui hoje para lhe dizer apenas uma coisa: nunca desista dos fitoterápicos. Você terá acionistas contrários aos investimentos neste tipo de pesquisa. Você vai enfrentar oposição até de acadêmicos da medicina. Mas não desista. Eles são o glorioso futuro da Avel. Eles vão valorizar a companhia no Exterior. Mas isso será ainda daqui a alguns anos. Só que é importante que você saiba disso, que tenha isso na sua mente. E, agora, minha querida menina, eu preciso ir.
Maria do Carmo estava no elevador, sozinha, porque já era tarde, ficara demais no escritório, analisando a performance do seu time de representantes. De repente, sentiu um tranco, como se o elevador fosse parar. Chegou a dobrar os joelhos, como se houvesse um impacto. Mas… apenas uma impressão. Logo chegou ao térreo e, ao passar pelo busto, em cobre, do fundador da companhia, lembrou-se da importância que ele dava, muitos anos antes disso estar na moda, aos medicamentos fitoterápicos e, por um segundo, imaginou que, se tivesse poder dentro da empresa, determinaria um incremento nas pesquisas deste segmento.
*Isabel Fomm de Vasconcellos é escritora e jornalista com especialização em saúde.
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foto: Driscoll l Morguefile.com