Por: Isabel Fomm Vasconcellos*
Quando eu era menina, costumava-se citar o ditado: “Em mulher não se bate nem com uma flor”.
Hoje, no Dia Internacional da Mulher, ganhamos montes de flores (ótimo negócio para as floriculturas).
No 8 de março pode-se ver pelas ruas várias mulheres carregando florzinhas. As empresas, e os chefes das mulheres, costumam presentear suas funcionárias com uma rosa embrulhadinha, um cartãozinho, uma fitinha.
A mesma empresa (e o mesmo chefe) que ainda paga um salário inferior ao dos homens, na mesma função, para sua funcionária mulher.
A mesma empresa que ainda dribla a lei das creches, impedindo que suas empregadas que amamentam possam ter o bebê ali, com elas, no local de trabalho.
A mesma empresa (e o mesmo chefe) que muitas vezes deixa de promover uma mulher, por preconceito, por medo que ela não tenha pulso para o cargo de chefia, ainda que ela seja o mais competente e adequado funcionário para a promoção.
E dá-lhe florzinha no Dia Internacional da Mulher!
O Dia Internacional da Mulher, embora eu desejasse que ele não existisse, que não precisasse existir, me faz pensar naquelas mulheres que trabalham oito horas por dia e frequentemente passam mais quatro horas nos ônibus apertados e no inferno do congestionamento; chegam em casa, preparam um jantar, fazem o arroz, lavam as verduras, fritam os bifes, descongelam o feijão, ouvem as queixas e as histórias dos filhos, botam a roupa na máquina para lavar e depois, quando as crianças já jantaram e a novela está acabando, chega o marido bêbado e faz um escândalo porque o bife está duro e resolve bater nela porque está bêbado, porque está pê da vida com o chefe, porque não conseguiu dinheiro para comprar aquele velho fusca do vizinho.
Penso naquela mulher que passou o dia no cabeleireiro e no shopping, chegou em casa, mandou a empregada caprichar no suflê e fazer a torta preferida dele para a sobremesa porque hoje é o seu aniversário de casamento; pediu aos filhos adolescentes que viessem para o jantar e, secretamente, esperou que ao menos a secretária do marido o tivesse lembrado da data e que ele, afinal, trouxesse flores… Mas o marido chega tarde, quando o suflê ja murchou, chega de cabelo molhado (não tinha secador nessa porcaria de motel onde ele foi? – pensa ela), cheirando a uísque e com um certo volume por entre as calças, denunciando o Viagra que ele tomou pra encarar a outra. E ele, que está frustrado porque perdeu hoje um dinheirão na bolsa de valores, fica mais frustrado ainda ao perceber que o jantar especial era pra ele, era por causa do que ele esqueceu e, frustrado, se tranca no quarto com ela (os filhos já estão em seus quartos, mergulhados nos fones de ouvidos dos computadores) e bate, bate nela, porque ela não é a amante, porque ele perdeu dinheiro, porque ele esqueceu a data.
Eles batem nelas.
Vinte e cinco por cento das mulheres brasileiras apanham regularmente de seus companheiros.
São o saco de pancada das frustrações deles. São o objeto de propriedade deles, as escravas, e escravo é alguém cujo dono pode dispor como bem entender.
Não interessa o nível social, de escolaridade, de qualquer coisa, das pessoas. A espantosa cifra de 1/4 dos casais brasileiros vive sob a égide da violência doméstica.
Estamos doentes. A nossa sociedade está seriamente doente. E gente doente cria filhos doentes, que tendem a perpetuar a doença.
São estas mesmas mulheres, espancadas, sem auto-estima, incapazes de reagir, incapazes de se defender, que torcem os nariz para as corajosas, para as feministas, que apanharam nas cadeias para que as mulheres tivessem o direito de votar, de se alfabetizar, de estudar, de trabalhar, de planejar a sua prole, de ter prazer sexual…
Somos nós, mulheres contemporâneas, nós, as 75% que não apanham (não apanham literalmente, mas apanham emocionalmente), que negamos a nossa história, a discriminação social que ainda, sim, sofremos.
Somos nós, 100% das mulheres, 25% que apanham e 75% que não apanham, que ainda colocamos a nossa felicidade e o nosso destino na responsabilidade de um macho que nem sempre é tão responsável assim.
Somos nós que educamos os nossos filhos nos valores antigos. Somos nós que ainda nos desvalorizamos, que acreditamos em nossa própria inferioridade. Somos nós.
Ah, merecemos sim as florzinhas literais e as dos anúncios comerciais do Dia Internacional da Mulher.
Florzinhas que até podem ser bem intencionadas, mas que continuam sendo uma belo tapa na nossa cara!
*Isabel Fomm Vasconcellos é apresentadora e produtora do Saúde Feminina (segunda a sexta, meio dia, na Rede Mulher de TV) e autora de vários livros.
www.isabelvasconcellos.com.br