Por: Isabel Fomm de Vasconcellos*
À primeira vista pode parecer que o corpo das mulheres e a política não têm nada a ver. Mas têm tudo. A luta feminina pela igualdade de direitos na sociedade passa necessariamente pela conquista do próprio corpo. As mulheres, no passado (e um passado nem tão distante assim!) não tinham direito algum, não votavam, não tinham direito à propriedade, eram proibidas de falar em público e eram eternamente tuteladas, primeiro pelos seus pais (homens) e depois pelos maridos. Também, é claro, não eram senhoras de seus próprios corpos e, pensando bem, certamente até hoje ainda não o são.
A primeira voz que se elevou, contra esse não domínio do corpo feminino, foi a da enfermeira Margaret Sanger (foto). Ela nascera no estado de Nova Iorque – Margaret Louise Higgins, era seu nome de solteira – em 14 de novembro de 1879. Em 1900 já era enfermeira. Sua mãe, que tivera 11 filhos, morrera muito cedo e Margaret atribuía às seguidas gravidezes maternas esta morte prematura. Ela costumava dizer que nenhuma mulher seria verdadeiramente livre enquanto não fosse dona de seu próprio corpo. Começou uma grande cruzada nos Estados Unidos pelo direito ao controle da natalidade. Foi um escândalo. Margaret foi presa, perseguida e exilada. Mas, mesmo assim, quando voltou à América e foi levada a julgamento, a própria primeira dama americana escreveu ao promotor e Margaret acabou sendo considerada inocente. Seu crime? Segundo as puritanas autoridades de então, “divulgação de pornografia”. Os próceres americanos da época acreditavam que ensinar às mulheres os poucos métodos contraceptivos disponíveis era divulgar pornografia! Naquele tempo as mulheres só podiam recorrer ao aborto clandestino para se livrar de mais uma gravidez indesejada. E, na maioria das vezes, essa gravidez era indesejada por motivos puramente financeiros. Poucos casais podiam (como até hoje acontece) alimentar, vestir e educar uma montanha de filhos. Os maridos (como até hoje ainda acontece com freqüência) se recusavam a colaborar, achando que filho e gravidez era problema da esposa e, assim, muitas mulheres morriam por abortos mal feitos e partos seguidos e também mal feitos.
Hoje temos um verdadeiro arsenal contraceptivo à nossa disposição. Mas setores conservadores da nossa sociedade ainda põem a boca no mundo, falando contra a pílula, contra o diu, contra a pílula do dia seguinte e até contra a camisinha, que pode, além de evitar a concepção, evitar o triste destino de ser portador do vírus da aids.
As mulheres (e também os homens, é claro) desconhecem quase tudo sobre o funcionamento de seu próprio corpo. Muitas ainda têm vergonha de ir ao ginecologista. Outras se recusam a usar absorvente interno com medo de que este “se perca” dentro do corpo, revelando assim uma total ignorância de sua própria anatomia.
Quando se fala em direitos sexuais, então, a coisa fica ainda pior. Reprimidas durante milênios, a maioria das mulheres não se permite sequer sentir desejo, quanto mais ter prazer.
Curiosa e ironicamente este mesmo corpo feminino reprimido e calado, alvo de tantas manifestações contrárias ao seu domínio por suas próprias donas, é constantemente exposto, na mídia, como motivo de exploração sexual e sensual. A nossa sociedade parece exigir que sejamos todas umas deusas da sensualidade, com corpos esculturais, malhados, magros e perfeitos, e, para isso, nos condenam até mesmo a sacrificar nossa saúde física e mental. Corpos esculturais para que? Se nem mesmo nos dão direito ao prazer sexual puro e simples? Corpos esculturais para continuar simplesmente a excitar a imaginação e as fantasias sexuais masculinas, destes mesmos homens que querem legislar em cima dos nossos corpos, que querem nos condenar a ter filhos resultantes de estupros ou a parir fetos anencéfalos.
Margaret Sanger estava certa. Jamais seremos livres, jamais seremos cidadãs plenas, enquanto não conhecermos os nossos corpos e enquanto não formos donas deles. O direito de mandar em nossos corpos, o direito à contracepção já é mais que uma conquista da moderna ciência e cada mulher deve fazer uso dele, ou não, de acordo com a sua própria consciência. Sem interferência do estado, da lei, da mentalidade chauvinista de alguns. O direito ao conhecimento do funcionamento do corpo, a informação em serviços de saúde pública, o respeito ao desejo de cada mulher, o direito à educação sexual, tudo isso são conquistas políticas femininas que ainda estão longe de se tornar realidade. Mas só nós, mulheres, podemos exigir e cobrar isso da sociedade.
*Isabel Fomm de Vasconcellos é apresentadora e produtora do Saúde Feminina (segunda a sexta, meio dia, na Rede Mulher de TV) e autora de vários livros.
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