Por: Isabel Fomm Vasconcellos*
Quanto mais conheço a história da humanidade, mais surpresa fico com a indiferença e a falta de reconhecimento que temos, na sociedade, para com o passado. Nós vivemos, usufruindo de todas as conquistas dos nossos antepassados, como se nada devêssemos a eles. E ainda reclamamos da vida.
Imagine a vida sem carro, sem celular, sem computador. Imagine a vida sem direito ao voto, sem direito algum, à mercê do grupo mais poderoso. Imagine a vida tendo que matar o frango que você vai fazer para o jantar. Imagine a vida sem luz elétrica. Sem penicilina. Sem analgésico. Sem anestesia de dentista. Sem cirurgia plástica. Sem som estéreo em casa ou no carro. Sem televisão. Sem rádio. Sem avião. Sem telefone. Sem hidratante. Sem shampoo. Sem máquina de lavar. Sem geladeira. Sem microondas. Sem cirurgia cardíaca.
Pois tudo isso, é conquista do fim do século XIX e do século XX.
Há até apenas duzentos anos passados, não tínhamos nada disso.
A humanidade camelou milênios para, em apenas dois séculos, evoluir para todos esses modernos confortos. Saiu da caverna para a nave espacial, do grito para o satélite de comunicação. Mas nossos antepassados pagaram um alto preço em cada passo, em cada pequena descoberta, em cada conquista, social ou tecnológica. Todo o bem estar e toda a qualidade de vida que podemos ter hoje têm as marcas do sofrimento e da luta de nossos antepassados.
Também é assim com as mulheres. As mesmas dondocas que usufruem dos direitos que as suas antepassadas conquistaram para elas, viram a cara e torcem o nariz quando ouvem a palavra feminista. Mas foram as feministas, e apenas elas, mais ninguém, que conquistaram para nós, mulheres de hoje, todos os direitos que temos na sociedade. Desde o simples e básico direito de votar, passando pelo direito à propriedade, ao prazer sexual, ao estudo, ao trabalho… Tudo o que temos hoje, mulheres, na sociedade, é conquista feminista, sim. Algumas mulheres corajosas se expuseram à prisão, ao ridículo, ao exílio e até à morte, para que hoje, nós, mulheres, pudéssemos viver como vivemos.
Temos uma dívida impagável com nossos antepassados e antepassadas.
Talvez nossos filhos e netos não possam dizer o mesmo das atuais gerações. Materialistas. Consumistas. Com descaso pela terra, pela natureza. Ingratos. Ignorantes da história que nos trouxe até aqui. Assim somos nós. Excessivamente preocupados com o ter, desprezando o ser, apenas usufruindo, usufruindo, usufruindo… Ignorando essa extrema interdependência que existe entre todos nós. Egoístas. Vaidosos. Imediatistas. Criancinhas mimadas, a querer mais e mais, acumulando bens que certamente não levaremos para os nossos túmulos. Nos achando muito importantes e virando a cara para o nosso próprio passado, virando a cara para o que realmente poderia nos definir como seres humanos.
Até que, um dia, a vida nos mostre a sua verdadeira face. Um infarto. Um câncer. Um desastre de automóvel. Um filho que morre antes do tempo. Um amor que se vai. E todos os nossos sonhos consumistas, toda a futilidade que rege essa sociedade de consumo, tudo desaba. Já não importa ter a televisão do vizinho, o carro do ano, a barriguinha lipoaspirada, o corpo malhado. Já não importa a bolsa de grife.
Uma boa peça pregada pelo destino nos reduz à nossa verdadeira condição humana. Livres das ilusões consumistas da sociedade de hoje em dia, talvez nos lembremos, afinal, de que tudo o que temos hoje devemos aos nossos avós. Talvez percebamos que o que acontece a um nos afeta a todos e conquistemos um pouco mais de humildade, um pouco mais de generosidade, um pouco mais de humanidade e da dimensão histórica que nos trouxe até aqui.
Mas, recuperados do susto e da perplexidade do sofrimento, rapidamente nos esqueceremos. E voltaremos a ser esses monstros de egoísmo e de intolerância que frequentemente somos no cotidiano moderno.
Às vezes parece inacreditável que estes mesmos monstros sejam capazes de produzir coisas maravilhosas, como a música, a arte, a ciência. Parece inacreditável que sejam capazes de gestos de solidariedade, de amor ao próximo, de carinho, de compaixão, de heroísmo.
Somos apenas frutos do meio. Sem a sociedade nada seríamos. Sem a cultura, sem a história, seríamos apenas animais. Não animais racionais. A nossa racionalidade é a nossa herança. É preciso ter isso em mente, todos os dias, para escapar das armadilhas da artificialidade que a mídia nos vende a cada instante. É preciso ter em mente a morte, que chegará inexoravelmente para todos nós, para conseguir um sentido para a vida. Um sentido que seja mais, muito mais, do que a louca competição pela posse, pelo poder, pelos bens materiais.
Certamente, para alcançar a sonhada felicidade, há que ser preciso agradecer, reconhecer e reverenciar nossos antepassados. Há que ser preciso conhecer a nossa própria história.
* Isabel Fomm Vasconcellos é apresentadora e produtora do Saúde Feminina (segunda a sexta, meio dia, na Rede Mulher de TV) e autora de vários livros.
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