Por: Isabel Fomm Vasconcellos*
Foto: Marília Gabriela no TV Mulher da Rede Globo, anos 80
Em 1982, Amelinha Telles, heroína da resistência contra a Ditadura Militar, fundou a ong União de Mulheres, ativa e viva até hoje. Nem se usava, ainda, dizer “ong”, na época da fundação.
Em 1987 eu fazia o meu programa de TV Condição de Mulher e recebi uma carta de telespectadora do interior do Rio Grande do Sul em que ela me narrava o seguinte fato: tinha se afiliado à União de Mulheres, que já existia também em sua cidade, e militava há um ano, sempre debaixo de imensas gozações do marido. Mas, um dia, vendo o meu programa de TV, o tal marido gozador que não levava a sério a militância da esposa, viu a União de Mulheres retratada no programa. A partir daí, dizia a telespectadora, passou a respeitar o trabalho da esposa na organização.
Essa é a força da TV. Por alguma razão misteriosa, nós brasileiros damos extrema importância àquilo que a TV mostra, valorizamos as pessoas e os assuntos retratados na telinha. E não me parece que a nossa TV esteja mostrando atualmente o que temos de melhor ou de mais importante no País. No entanto, sempre julgamos o contrário, valorizando o que a TV nos mostra como se fosse realmente o melhor e o mais importante.
Outro dia ouvi da boca do meu irmão Alvan, um homem de TV: a mulher brasileira regrediu nos últimos anos. Virou peitos e bunda, virou mulher objeto.
Fiquei pensando. Regredimos? Como? Se pulamos de 33% para 51% da força de trabalho nacional em duas décadas; se somos 56% dos bancos escolares nas Universidades; se somos 21% dos chefes de família; se conquistamos o direito ao prazer sexual; se a sociedade já aceita muito melhor a nossa presença na vida produtiva e política do país?
A conclusão que cheguei: a TV é quem não está retratando a mulher brasileira. A TV está mostrando alguns símbolos sexuais, essas “deusas do corpo”, e contribuindo para disseminar a idéia de que somos apenas isso.
É interessante observar ainda que os programas ditos femininos que são exibidos durante o dia seguem a fórmula dos anos cinqüenta: compras, cuidados com a beleza, trabalhos manuais, culinária e fofoca. Essa última, a fofoca, mudou bastante em 50 anos. Hoje é muito mais descarada e cruel. No entanto, na essência, a TV segue rigorosamente a fórmula criada para mulheres de 50 anos passados.
Bom, se somos 51% da força de trabalho, só algumas mulheres podem assistir TV no período diurno. E não há programas “femininos” no chamado horário nobre. Novelas já foram consideradas como programas para mulher, mas hoje não são mais.
Será que os homens que dirigem as TVs (mulheres na direção são ainda raríssimas exceções na televisão) não percebem a mudança? Será que eles se recusam a ver que somos muito diferentes do que foram as nossas antepassadas de cinco décadas atrás? Será que eles gostariam que nós ainda nos limitássemos à fofoca e aos trabalhos manuais e culinários? Ou simplesmente vão repetindo a fórmula desses programas porque está convencionado que programa feminino é isso e pronto?
Onde está na TV todo o restante do universo de interesses femininos?
Engraçado, porque no resto da mídia não é assim.
Revistas como Cláudia, Cosmopolitan (Nova) e Marie Claire trazem inúmeros temas da vida da mulher moderna que fogem à batida e ultrapassada fórmula que se vê em todos os nossos programas de TV. Será que os diretores desses programas nunca tiveram a curiosidade de folhear uma revista feminina? Nunca pensaram que poderiam conquistar uma outra fatia de público (justamente as que não podem assistir TV à tarde porque trabalham e portanto são donas do seu próprio dinheiro, têm mais poder aquisitivo, dariam maior retorno aos anunciantes, etc. etc. etc) fazendo programas dirigidos à mulher que fossem mais inteligentes do que aquilo que normalmente temos visto e em horário possível para quem tem obrigações profissionais durante o dia?
A Rede Globo, na década de 80, havia acertado com o extinto (e até hoje comentado) TV Mulher. Embora exibido pela manhã, o TV Mulher, com direção do Nilton Travesso e produção da Rose Nogueira, emplacou e fez sucesso ousando tocar em todos os assuntos que os programas femininos de hoje continuam ignorando. Sob a ancoragem de Marília Gabriela, o extinto TV Mulher tinha a Floriza Verucci falando em questões de direito, a Marta Suplicy desmascarando o sexo e tinha até o humor de Henfil, fazendo um TV Homem em preto e branco e com cenário capenga, como se ali homem fosse relegado a um segundo plano.
Era bom. Por que será que a fórmula não se repetiu e não se repete até hoje?
Poder-se-ia argumentar que os programas diurnos são dirigidos à dona de casa, à mulher que não trabalha e, portanto, têm que ser mesmo culinária-compras-trabalhos manuais-fofoca. Mas isso partindo-se da premissa que esse universo seria o universo das donas de casa.
Também não é verdade. As chamadas donas-de-casa votam, são informadas, lêem as revistas femininas citadas, têm que administrar a vida e o orçamento doméstico, têm que criar os filhos e educá-los,interessam-se pela vida cultural e intelectual, precisam servir de apoio para os eventuais problemas profissionais de seus companheiros, são consumidoras e têm problemas de ordem legal. Os ditos programas femininos são muito tímidos e superficiais quando tocam em matérias de outras áreas que não a culinária-fofoca-moda-trabalhinhos manuais. Deixam de fora da telinha mulheres e homens que teriam realmente algo a dizer sobre direito, educação ou condição social. São superficiais também quando falam na saúde, enfocando principalmente a doença e não a promoção da saúde. São ridiculamente superficiais quando falam em cultura.
É uma questão interessante.
Não acredito, recuso-me a acreditar, que a mulher brasileira queira encontrar na televisão apenas receitas e nenhuma reflexão que possa auxiliá-la a enfrentar melhor a luta cotidiana da vida.
Isabel Fomm Vasconcellos é produtora e apresentadora do Saúde Feminina, na Rede Mulher de TV, de segunda a sexta, ao vivo, 14h00 e autora do livro “A Menstruação E Seus Mitos”, editora Mercuryo.