Por: Isabel Fomm Vasconcellos*
Marina tinha um sonho. Acreditava que seria num Natal que o seu sonho se tornaria realidade. O problema era saber em que Natal. Este, que se aproximava, já seria o seu 14º. Desde os seis anos de idade, quando sua mãe lhe perguntara o que ela queria ganhar do Papai Noel, aparecera aquela idéia na sua cabecinha. Ela não dissera a mãe, inventara um brinquedo qualquer, mas, dentro de si, lá no fundo do seu coração, formulou aquele desejo. Ela não se importaria de, na manhã de natal, nada encontrar sob a árvore desde que Papai Noel satisfizesse o seu desejo.
É claro que agora que ela já era uma moça, sabia que papai Noel algum realizaria o seu sonho. Sabia que era quase impossível que as coisas mudassem como ela queria. Sabia que só mesmo Deus, se é que Ele de fato existia, poderia dar um jeito naquilo.
Mas, talvez por uma espécie de superstição, Marina tinha uma certeza interior, a certeza que, de alguma maneira milagrosa, seria num Natal que o seu sonho se realizaria.
Era 21 de dezembro, faltavam apenas três dias para o grande acontecimento familiar que era, todos os anos, a ceia da véspera, em sua casa. Toda a família se reunia lá, em sua casa, e Celina, sua mãe, se matava de trabalhar para preparar tudo.
Naquele dia, Marina e a mãe foram a uma padaria, no Bexiga, para encomendar os maravilhosos pães que colocariam à mesa da ceia. Sua mãe sempre comprava aqueles pães italianos no Natal. E levava também um pães comuns um ou dois dias antes, para deixá-los amanhecidos e fazer com eles as rabanadas, que, ela dizia, não podiam faltar numa verdadeira mesa natalícia.
Naquele dia, Marina, que já fora àquela padaria muitas vezes, reparou num cartazete que nunca notara antes. Era um pequeno quadrinho, pintado à mão, num canto de parede. Dizia: “Deus não tem outras mãos que não as tuas”.
Para Marina, aquela pequena frase soou como uma grande revelação. Afinal, era Natal e há tantos natais ela esperava que Deus (ou o Papai Noel) realizasse o seu sonho. E agora ela percebia que Deus poderia, sim, atender ao seu grande desejo. Mas que isso talvez tivesse que acontecer através de suas próprias mãos, de seus próprios atos, já que Deus não tinha outras mãos que não as dela própria.
Desde muito pequena, Marina ouvia a pancadaria no quarto dos pais. Acostumara-se a temer a chegada do pai, no fim da tarde. Observava-o: ele tinha bebido ao sair do escritório? Ele estava de novo com problemas na fábrica? Ela sabia que, quando algo de errado acontecia na vida de seu pai, um industrial bem sucedido e que dava a ela uma vida de muitos privilégios, era em sua mãe que ele descontava. Brigavam e ele batia nela. Celina procurava não gritar. Marina sabia. Mas às vezes gritava. E Marina ouvia o barulho da briga, as cintadas dele, os socos. No dia seguinte, a mãe levantava e ia à cozinha supervisionar as empregadas, preparar a mesa caprichada do café, como se nada houvesse. Às vezes dava pra ver, no rosto ou nos braços da mãe, as marcas da violência sofrida.
Mas Celina nunca dizia nada. Nunca reclamava. E nunca ninguém comentava nada sobre isso.
Quando ainda era criança, Marina acreditava que todos os homens batiam em suas mulheres. Mas agora sabia muito bem que isso não era verdade, sabia que isso era uma espécie de vício de seu pai. E ficava muito surpresa quando via gestos de carinho nele, não só para com ela própria, como para com a sua mãe. O pai era um homem carinhoso, em certas ocasiões e, muitas vezes, depois de uma noite de pancadaria, aparecia no dia seguinte, com um lindo buquê de flores para sua mãe.
Naquele distante Natal, aos seis anos de idade, Marina queria que Papai Noel lhe desse a graça de nunca mais ver (ouvir, melhor dizendo) seu pai surrando a sua mãe. Em certas ocasiões ela acreditava que seu sonho se realizara. Passavam-se meses de tranqüilidade doméstica. E a mãe ia ficando feliz, mais corada, mais bonita. Um belo dia, porém, acontecia de novo.
Ela nunca, nunca mesmo, tivera coragem de comentar nada com a mãe. Ambas agiam como se aquilo nunca acontecesse.
Agora, de volta da padaria, Marina pensava que Deus não poderia mesmo ter feito nada. Era ela, percebia, que tinha que fazer. Vinha no carro, no congestionado trânsito de Natal, ao lado da mãe. De repente, muniu-se de toda a coragem e disse:
– Mãe, por que você deixa o papai bater em você?
Celina voltou-se para ela, completamente surpresa:
– Marina! Seu pai é um homem muito bom.
– Mas, vira e mexe, ele bate em você. Eu já estou de saco cheio de aumentar o volume do som no meu quarto para não ouvir… Se ele é tão bom, por que bate em você?
Celina suspirou:
– Seu pai tem muitas responsabilidades e problemas também na fábrica. Às vezes a pressão é grande demais e ele…bom…ele tem que descontar em alguém.
– Mas por que em você? Como você pode aceitar isso? Isso é doença, mãe. Eu não sou mais criança e já li muito sobre violência doméstica. Por que você não faz ele procurar um médico e resolver isso de uma vez?
– Médico?
– É, mãe. Um psiquiatra. Dinheiro não é problema. Por que ele não vai a um bom médico?
Celina soltou um riso triste.
– Engraçado, minha filha, você está me dizendo a mesma coisa que disse a delegada.
– Que delegada?
– Há uns meses atrás eu fui a uma delegacia da mulher. Mas não formalizei queixa contra o seu pai. Eu amo o seu pai, Marina. E sei que às vezes ele me agride porque não consegue se controlar. A delegada conversou muito comigo e me explicou que quase ¼ das mulheres brasileiras apanham regularmente dos maridos. Os homens acham que nós somos propriedade deles. Descontam na gente as suas frustrações. Eu não sabia como falar com seu pai sobre isso. A delegada me explicou que muitas mulheres, como eu, acabam se conformando com a situação e pronto. Então eu fui ao médico.
– Você foi ao médico?
– Fui. Estou indo. Há quatro meses. E compreendi muita coisa. Acho que seu pai não vai mais me bater.
– Como? Por que você foi ao médico?
– Não. Porque ontem à noite eu consegui afinal conversar com ele sobre isso. Ele estava calmo e carinhoso e eu consegui dizer tudo a ele. Contei da delegada, contei do médico. Pensei que ele ia ficar uma fera, que ia dizer que eu não tinha o direito de expor nossos problemas a estranhos e pensei até que ele me bateria de novo. Ele ficou vermelho como um pimentão. Depois me disse que também não gostava daquilo, mas que não conseguia se controlar e concordou em ir ver o médico. Por isso é surpreendente que você tenha tocado no assunto justamente hoje. Você também vai precisar ir ao médico, minha filha. Temos que fazer o que eles chamam de terapia familiar.
E Celina fez um carinho desajeitado na perna da filha:
– Você vai ver. Vamos resolver o problema. E não queira mal seu pai por isso. Ele é um bom marido e sempre foi um bom pai para você.
– Por isso mesmo, mãe, é que eu não conseguia entender… Eu gosto dele, mãe. Mas não gosto do que ele faz a você.
– Fico aliviada que tenhamos conseguido conversar sobre isso, minha filha. Você já é uma moça e pode entender que seu pai tem um problema. Mas nós vamos resolver, ok?
Estavam nesse momento entrando na Avenida Paulista. E Marina viu um enorme Papai Noel, plantado em cima da marquise de um banco. Sorriu para ele, por entre o vidro do carro luxuoso. Pensou que, afinal, chegara o Natal dos seus sonhos. E agradeceu por existirem médicos e delegadas. Agradeceu por terem, ela e sua mãe, acesso aos médicos e às delegadas. Agradeceu por ter tido coragem de falar. E fitou longamente as suas mãos de menina.
* Isabel Fomm Vasconcellos é apresentadora e produtora do Saúde Feminina (segunda a sexta, meio dia, na Rede Mulher de TV) e autora de vários livros.
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