As duas versões sobre Chica da Silva: qual você prefere?
Por: Wilma Ary – jornalista e escritora
As histórias podem ser contadas de várias maneiras, Chica da Silva é uma mulher que sugere controvérsia, por isso mostraremos duas posições contraditórias sobre a mesma personagem.
Voluntariosa e má
Figura do populário brasileiro, a negra Chica da Silva ficou famosa pelo poder que exerceu, em plena escravatura, no arraial do Tijuco, mais tarde a cidade mineira de Diamantina.
Francisca da Silva nasceu em data e local ignorados. Antiga escrava de José da Silva e Oliveira, foi libertada a pedido do contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, de quem tornou-se amante quando já tinha dois filhos. Atendida em todos os desejos pelo riquíssimo contratador, vivia num magnífico edifício em forma de castelo, construído nas encostas da serra de São Francisco, que dispunha de capela particular e de um teatro completamente equipado, no qual Chica promovia bailes e representações. Na chácara, que incluía jardins, cascatas e fontes artificiais, um grande lago continha um navio em miniatura, capaz de abrigar de oito a dez pessoas e destinado a diminuir a tristeza de sua dona por nunca ter conhecido o mar.
Chica vestia-se como uma rainha, sempre coberta de jóias. Tratava os portugueses com desprezo e mandava castigá-los por seu escravo Cabeça. Em seu testamento, datado de 1770, declarou ter 14 filhos. Sua vida, transfigurada pela lenda, inspirou a Antônio Calado a peça teatral O tesouro de Chica da Silva (1959) e foi tema de um filme brasileiro de sucesso, Chica da Silva, sobre um romance de João Felício dos Santos, dirigido por Carlos Diegues, com Zezé Mota no papel principal. Chica da Silva morreu em 1796.
A outra versão mostra uma pesquisa que contesta mito de Chica da Silva.
O alegado apetite sexual, a promiscuidade e as crueldades que sempre pontuaram as histórias contadas sobre Chica da Silva, a ex-escrava que freqüentou a fechada elite mineira do século XVIII, podem não passar de mitos. É o que sugere a professora Júnia Furtado, autora de estudo que mostra que a ex-escrava não era a mulher devassa. A professora estudou a vida de Chica para o projeto Pólo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha. Financiado pela Finep e Fapemig, o trabalho foi premiado pelo concurso 8º Dotação em Pesquisa sobre Mulher e Relações de Gênero, promovido pelas Fundações Ford e Carlos Chagas. Júnia Furtado reconstruiu a personagem histórica de Chica da Silva.
Segundo a professora, a própria estabilidade do casamento com um nobre branco, o fato de Chica freqüentar a elite e todas as irmandades brancas do Tijuco e de ter sido enterrada no cemitério da Igreja de São Francisco de Assis (destinado aos brancos ricos) são provas suficientes de que ela era uma mulher que se portava de acordo com os padrões morais e sociais da época, como tantas outras,e obteve sua carta de alforria através do concubinato com um nobre branco, o contratador João Fernandes, que a comprou de um médico do Tijuco, em 1753.
O relacionamento durou 16 anos, período em que Chica teve 13 filhos. “Essa era praticamente a única forma de uma negra entrar na sociedade branca naquela época”, afirma Júnia Furtado. “Chica já era mãe de 14 filhos (ela já tivera um do seu antigo dono) e vivia com o contratador”, revela.
Depois da separação, Fernandes voltou para Portugal levando consigo seus quatro filhos homens, que receberam títulos de nobreza do Império Português. No Brasil, Chica recebeu propriedades deixadas pelo contratador que lhe garantiram a sobrevivência e a educação das filhas.
De acordo com Júnia, a ex-escrava tornou-se conhecida por sua crueldade e pelo grande apetite sexual graças ao livro Memórias do Distrito Diamantina, do século XIX, escrito por Joaquim Felício dos Santos.
“A publicação faz de Chica a única negra a figurar em um registro histórico e o autor encontra no sexo e na perversidade os pretextos para uma escrava merecer tal destaque”, diz.
Júnia chegou à desmistificação de Chica após estudar o seu comportamento em diversos documentos da época – registros de batismo, carta de alforria, títulos nobiliárquicos dados aos filhos e outros aspectos de sua vida no século XVIII. Além de Diamantina, a professora também pesquisou a vida da ex-escrava em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Macaúbas (perto de Santa Luzia), Mariana e em Portugal.